Apesar do que diz a lenda, elas não costumavam combater junto com seus maridos e eram extremamente respeitadas pelos homens.
As mulheres vikings eram valorizadas pelos homens de sua sociedade |
Sanguinárias, ávidas por dar golpes de machado contra o inimigo e um pouco promíscuas. A imagem das vikings que chegou aos dias de hoje é a de mulheres rudes que combatiam em grande número junto a seus esposos e não respeitavam o matrimônio. No entanto, estas teorias se confrontam com a verdade, pois a História nos diz que não costumavam participar nas famosas viagens de saque reproduzidas recorrentemente no cinema e que – embora desfrutassem da mesma liberdade sexual que os homens – não se deitavam com qualquer um que aparecesse em seu caminho. Elas eram de suma importância na sociedade escandinava e recebiam imenso respeito por parte dos homens, que poderiam se envolver em sérios problemas legais se cometessem a imprudência de manter relações sexuais com elas sem consentimento ou se as maltratassem.
Estes dados curiosos, assim como outras tantas histórias relacionadas com “os bárbaros assassinos do norte”, são parte de “Quiénes fueron realmente los vikingos” (Quem foram realmente os vikings), um novo guia histórico sobre este povo escrito pela historiadora espanhola Laia San José Beltrán. O livro mostra detalhes sobre esta civilização tão desconhecida em nosso país, como sua escrupulosa higiene e seu armamento. A obra complementa o primeiro livro da autora “Vikingos, una guía histórica de la serie de History Channel” (Vikings: um guia histórico da série do History Channel) e seu próprio blog pessoal “The Valkyrie’s Vigil” (A Vigília das Valquírias), um dos mais completos no idioma espanhol sobre temática nórdica.
Laia San José e suas duas obras sobre a temática viking |
As mulheres vikings não costumavam combater
Dentre todas as mentiras que têm sido contadas sobre as escandinavas nos últimos anos, a historiadora destaca uma: a que afirma que cerca de 50% dos vikings que viajavam por toda a Europa saqueando outras culturas eram mulheres. Não tem nada mais longe da realidade, pois a sociedade tinha reservado outro papel para elas, diferente do de feras guerreiras. “Nos dias de hoje se tem deturpado completamente como eram as vikings daquela época. É incrível a degeneração que gira em torno de sua imagem e seu papel na sociedade. Apesar do que dizem as séries e os filmes, eram mais camponesas e mães do que guerreiras. É provável que algumas lutassem, mas é impossível que a metade dos que viajavam para saquear fossem mulheres”, afirma a especialista.
Esta modificação da verdadeira imagem das vikings começou há 100 anos, em um momento da história em que na pintura e nas óperas surgiu a ideia romântica (e errônea) de que as mulheres escandinavas iam armadas até os dentes para as batalhas. Parece que a falsidade calou até o mais profundo da sociedade, pois desde então a mentira não parou de se repetir e se estendeu de uma forma incrível até chegar à atualidade.
“Parece que é preciso colocar as mulheres em papéis de homens para que sejam reconhecidas.[1] Parece que uma viking só impressiona se for combatente, e não se decide ser mãe. Naquela época havia papéis diferentes e cada gênero tinha uma função igualmente válida. Tendemos a olhar o passado a partir de uma perspectiva atual, e isso é algo totalmente equivocado. As mulheres vikings eram muito importantes na época, o bastante para que não seja necessário masculinizá-las, porém, como gostam mais de dizer que elas lutavam, assim as representam”, afirma a historiadora. Entretanto, San José Beltrán também assinala que nunca se pode generalizar e que é bem provável que algumas mulheres tenham lutado nas expedições de saque que seus maridos realizavam.
O verdadeiro papel das vikings
Pode ser que não se dedicassem à guerra, mas o papel da maioria das mulheres escandinavas casadas de classe média (as “húsfreyja”) daquela época era tão importante como o dos homens. Eram encarregadas de transmitir oralmente todos os ensinamentos aos seus filhos e também eram responsáveis pela direção dos trabalhos em suas fazendas quando os maridos estavam saqueando. Esta tarefa era de suma importância, pois o trabalho no campo era o que dava sustento e alimento durante o ano a todos seus entes queridos e, se era mal gerenciado, toda economia familiar poderia ir para o ralo. Da sua parte, os homens não desprezavam esta tarefa, mas consideravam-na indispensável e respeitavam muitíssimo suas esposas por cumpri-la.
As mulheres também estocavam a comida e cozinhavam. “É muito curioso porque, nas sagas (histórias escandinavas), se conta que as mulheres eram os ‘pilares de dentro’ da casa (para o que tinham inclusive um termo: ‘innan húss’) e o homem era o ‘pilar de fora’. Dentro do lar, portanto, quem mandava era a mulher. Não somente tinham papéis associados atualmente ao mundo feminino, mas também sobre elas recaía toda a gestão da terra. Se elas fizessem uma má gestão de seus bens, era muito provável que no inverno toda a família morreria de fome. Também se deve atentar para uma coisa: Se todas as mulheres marchassem para a guerra, quem cuidaria do lar e organizaria a economia?”, completa a estudiosa.
No entanto, o fato de não participarem dos saques e ataques violentos (a machadadas) contra os os cristãos, não significa que as mulheres vikings não soubessem usar armas. Decerto dominavam bem o manejo de machados e arcos; e não era por menos, pois os usavam diariamente para cortar lenha e caçar. Estas habilidades serviam para as “húsfreyja” para defender seu lar de qualquer desavisado que tentasse causar problemas quando seus esposos estavam fora. “Temos que levar em conta que as vikings passavam muito tempo sozinhas, quando a maioria dos homens se encontrava em uma expedição de saque em algum lugar, e estavam encarregadas de defender o lar, os idosos e as crianças”, completa a historiadora.
Esta tarefa não era considerada nem melhor nem pior que as dos homens. Simplesmente era diferente. “O fato de que numa sociedade como a dos vikings cada um tinha uma função distinta não era algo ruim. O problema é que analisamos a partir de uma perspectiva atual. Simplesmente, eram papéis naturais que vinham desde a pré-história. Nos seriados se sacrifica a realidade em favor de uma imagem romantizada que todos gostam e acaba deturpando a história”, explica a especialista.
Infanticídio e taxa de mortalidade
Mas existem dados que confirmam que as vikings não combateram junto aos homens? Determinados costumes da época indicam que havia sido uma prática incomum. Entre eles se destaca o infanticídio (o assassinato seletivo de crianças recém-nascidas com má formação ou enfermidades e, em muitos casos, meninas). Na atualidade foram encontradas ossadas de recém-nascidos nas periferias de determinadas fazendas escandinavas, o que nos faz pensar que acabavam com suas vidas de forma intencional. Esta forma de proceder, somada à mortalidade por causas naturais, reduzia o número de mulheres, o que fazia que, uma vez adultas, fossem muito apreciadas entre os homens da região. A lógica, portanto, nos leva a pensar que os homens não queriam que elas morressem em combate.
As vikings podiam pedir o divórcio
“É muito improvável que, havendo tão poucas mulheres como havia, as enviassem à guerra para que corressem risco de morrer. As mulheres cumpriam uma função reprodutiva. Não é uma alegação machista nem feminista, é uma alegação histórica e real. Foi assim”, acrescenta San José Beltrán. Neste sentido, presume-se também que para o combate iriam as mulheres mais fortes, o que não deixaria mais que um punhado de idosos e crianças para defender as terras. Sem dúvida, bastaria um aviso aos bandidos das proximidades para que pegassem seus machados e espadas e dessem conta de enfrentar aqueles que encontrassem.
Curiosamente esta escassez de mulheres para contrair matrimônio e formar uma família pode ter sido o que fez com que os vikings fossem para além-mar conseguir riquezas. “Alguns historiadores sustentam que, em um determinado momento, houve excesso de homens para poucas mulheres. Por isso, os homens se viam obrigados a sair para saquear e conseguir riquezas, para que uma mulher os escolhesse. É lógico se pensar que, nessa época, não apenas se casava um homem com uma mulher, se casava uma família com outra. Assim, era interessante ter dinheiro. As riquezas adquiridas fora permitiam aos vikings converter-se em líderes, contratar um grupo de homens para que fossem ajudar nos saques, construir um barco, etc. Era um círculo vicioso. Mais dinheiro, mais possibilidades de ganhar mais”, adiciona a espanhola.
A discussão das tumbas
Outro elemento que tem contribuído para propagar a desorientação sobre o tema é que, como se pôde descobrir atualmente, muitas vikings foram enterradas com armas e escudos. Não são poucos os que afirmam que estes arsenais haveriam sido utilizados pela mulher para ir à guerra. Entretanto, Laia San José Beltrán não é da mesma opinião, e assinala que os escandinavos costumavam enterrar seus mortos (quer fossem homens ou mulheres) com todo tipo de oferendas, inclusive machados e espadas. “Mesmo que encontrássemos um sítio arqueológico em que uma mulher ou um homem estão rodeados de armas, não poderíamos assegurar que fosse um guerreiro. Supõe-se que o falecido era um combatente com base em uma série de dados, também existe a possibilidade de que as armas fossem um presente de sua família. Além disso, aqueles eram objetos usados cotidianamente em tarefas do campo. Poderia haver sido um guerreiro, um homem ou uma mulher que saiu para saquear poucas vezes em sua vida, ou um camponês ou camponesa”, afirma a especialista.
Neste sentido, Laia também assinala que, se as mulheres encontradas houvessem combatido, teriam sofrido fraturas nos ossos. No entanto, não é habitual encontrar restos ósseos femininos da época viking com marcas que possam se relacionar com ferimentos em combate.
“Os ossos podem nos revelar como morreu uma pessoa e que ferimentos sofreu ao longo de sua vida. Graças a certas características, se pode reconhecer ferimentos de espada ou machado, más formações provocadas pelas armas, ver se os restos ósseos se danificaram e voltaram a se recuperar, etc. Estas marcas tem sido achadas em alguns guerreiros vikings encontrados atualmente, porém não nos restos mortais femininos. De fato, se existiram mulheres que lutaram, não foi algo que ocorreu com frequência, muitos menos de forma generalizada. Era algo muito pontual”, afirma Laia San José Beltrán.
Por outro lado, nas tumbas vikings também tem se achado vários tipos de estatuetas com forma de mulher. Muitas delas eram “Valquírias” (as guerreiras mitológicas que pegavam uma parte dos falecidos após a batalha para levá-los junto aos deuses). Isto tem desconcertado de certo modo aos especialistas, pois se desconhece se as estátuas correspondem com um mero ritual ou se, ao contrário, representam combatentes femininas que cavalgaram junto aos homens em algum momento.
Pena capital para estupradores
Para os vikings, ferir uma dama era uma grande desonra. Se algo está claro, é que as antigas escandinavas eram bastante respeitadas pelos homens e isso está demonstrado em sua legislação. Então, esses rudes assassinos que realizaram todo tipo de ultraje fora de seus territórios (incluindo abusar das mulheres de seus inimigos) por lei proibiam categoricamente o estupro de mulheres vikings. Esta norma tinha tal importância que, aquele que a descumpria, era condenado à morte. Este castigo era excepcional para eles, pois não costumavam aplicá-lo em outros tipos de delitos graves - onde nesses casos, apenas expulsavam o delinquente da colônia.
Liberdade sexual
Por outro lado, as vikings não eram consideradas meros objetos sexuais que deviam estar a serviço do homem. Neste sentido, elas desfrutavam de uma liberdade similar a de seus esposos. Estavam entre as poucas mulheres da época que podiam pedir o divórcio por vários motivos. No caso de ser concedido, tinham o direito também de recuperar todo seu dote. Além disso, se fosse demonstrado que a culpa da separação havia sido do esposo, podiam reivindicar uma parte das riquezas que haviam conquistado junto com seu marido durante o casamento. “O divórcio na sociedade viking podia ser pedido por qualquer das duas partes. O ‘juízo’ era feito mediante testemunhas, que falavam em favor do esposo ou da esposa. Só havia uma exceção: os maus tratos. Neste caso, o divórcio era automático. Também era possível pedir o divórcio nos casos em que o cônjuge fosse consumista e não soubesse administrar bem sua terra. Outra causa era a impotência, algo compreensível, pois um dos objetivos do matrimônio era ter descendência. Finalmente, qualquer das partes poderia se separar se seu cônjuge não se vestisse de acordo com seu sexo. Ou seja, se um homem se vestisse de mulher ou vice-versa”, destaca a especialista espanhola.
NOTA:
[1] Sobre a representação moderna das mulheres vikings, recomendamos também o ótimo artigo do Professor Johni Langer, da Universidade Federal da Paraíba.
Link: https://www.academia.edu/1806928/Guerreiras_na_Era_Viking_Uma_an%C3%A1lise_do_quadrinho_Irm%C3%A3s_de_escudo_Women_warriors_in_the_Viking_Age_RODA_DA_FORTUNA_REVISTA_ELETR%C3%94NICA_DE_ANTIGUIDADE_E_MEDIEVO_VOL._1_N._1_2012
Texto traduzido e adaptado por Matria de: