Um aspecto fidedigno existente na
tradição de variados povos pelo mundo é o cuidado contínuo em preservar a
transmissão dos seus costumes às gerações futuras, para manter vivas suas
culturas através dos tempos. Tal transmissão se dá principalmente na relação
entre adultos e crianças. Naturalmente, esse aspecto da tradição encontra-se nas
comunidades afrobrasileiras, dentre as quais se destaca a influência Yòrùbá na
constituição da cultura de matriz africana na terra brasilis. Yòrùbá é também
uma das etnias mais influentes do continente africano.
Na era dos descobrimentos, por
meio da dispersão forçada de populações da Nigéria, Benin, Togo e Costa do
Marfim rumo às Américas, iniciou-se uma reconstrução identitária desses povos
que aqui desembarcaram. Durante sua diáspora, se desenvolveu um significativo
objeto simbólico desses povos, criado já no momento em que esses eram
transportados em navios tumbeiros que seguiam rumo ao Brasil. Trata-se das
pequenas bonecas denominadas Abayomi, cuja importância cultural será exposta a
seguir.
A bordo dos navios tumbeiros, as
mães africanas rasgavam retalhos de suas roupas e com eles criavam bonecas
feitas de tranças ou nós, sempre negras, que serviam como amuleto de proteção e
acalento para seus filhos ali presentes. Como objeto de distração que lhes
permitia serem crianças, mesmo naquele contexto perturbador, essas bonecas
podiam representar personagens da mitologia Yòrùbá, orixás e manifestações
folclóricas.
A palavra Abayomi significa “aquele
que traz felicidade ou alegria”. Oferecer a boneca era como dar ao outro o que
se tem de melhor, algo que carrega nossas melhores qualidades. Dar uma boneca Abayomi
é um ato de nobreza, é dar a uma pessoa querida aquilo de melhor que temos a
oferecer. As mães negras criavam as bonecas e presenteavam seus filhos em sinal
de amor, carinho e consolo, arrancando com as unhas pedaços de suas roupas.
Portanto, devemos imaginar o quão nobres eram os sentimentos dessas mães e sua
preocupação em transmitir força e esperança às gerações futuras.
As bonecas abayomi são parte de
vários objetos e ornamentos que permitiram à influente cultura Yòrùbá memorizar
e preservar seu passado em novas terras. Por esta razão não há olhos, nariz ou
boca nessas bonecas, o que faz com que elas rememorem quaisquer povos africanos
de mesma matriz Yòrùbá.
A boneca Abayomi, um inocente
brinquedo de criança, foi parte integrante na consolidação e preservação da
identidade dos povos afrobrasileiros por meio da sagrada ligação entre mães
negras e seus filhos.
Há atualmente ações comunitárias
que ensinam a confeccionar bonecas Abayomi enquanto conta-se às crianças sobre
a história delas e sobre a cultura afrobrasileira em geral. Com isso,
promovem-se laços de fraternidade e reflexões históricas que fortalecem o
substrato identitário dos povos afrobrasileiros. A artesã e militante do
movimento das mulheres Waldilena Martins, foi precursora deste tipo de ação
social no Brasil em finais de 1980.
A memória, união e ação histórica
de um povo são o que lhe mantém vivo ao longo das eras, com suas tradições que
ligam passado e presente. Num mundo onde impera a cultura de massa que desloca
e descentraliza a identidade do sujeito pós-moderno, apagam-se as múltiplas
culturas existentes, homogeneizando-as. Nesse contexto, produzir oficinas de
confecção de bonecas e outros objetos artesanais no interior de
projetos sociais anti-globalistas vinculados às múltiplas culturas brasileiras,
representa algo simples e recreativo para a interação de adultos e crianças. Mas,
ao mesmo tempo, esses ofícios artesanais podem significar uma ação poderosa de conscientização
e resistência contra o perverso modus operandi do mundo globalizado que aos
poucos dissolve culturas e identidades singulares que merecem resistir e seguir
seu próprio destino com alteridade.